quarta-feira, 13 de novembro de 2013

“Leve-me ao seu líder”


A ânsia da grande imprensa em apontar líderes – ou culpados – carrega consigo nossa incapacidade de pensar a política fora da lógica da representação e está repleta de incoerências risíveis

 Em junho deste ano, quando o país foi tomado por uma onda inédita e convulsiva de manifestações de rua, a revista Veja apresentou a seus leitores um líder. Maycon Freitas, que segundo a revista, havia reunido milhares de pessoas em manifestações no Rio de Janeiro por meio da página UCC- União Contra a Corrupção, no Facebook. Freitas sintetizava perfeitamente o gigante que acordou: segundo suas declarações, sua motivação para ir às ruas não estava relacionada a alguns centavos, mas a construir uma democracia melhor e, consequentemente, um estado melhor.

Com o rosto pintado de verde e amarelo e usando as cores da bandeira nacional, Freitas era apenas um dos milhares de jovens que foi às ruas gritar “sem partido” com vistas a melhorar a democracia, ignorando que a existência de partidos livres é uma das premissas básicas dos regimes democráticos. De modo semelhante, o engajado ativista reproduz, sem pudores, a máxima reacionária “direitos humanos para humanos direitos” e apoia as agressões da polícia aos black bloc, ignorando que a existência de direitos humanos ser parte importante para a constituição de sociedades democráticas e que, há algum tempo, existe uma uma separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e que a punição não é atribuição dos efetivos policiais.

Pegando carona na onda das manifestações, a mesma publicação que apresentou aos movimentos populares um líder que eles ainda não conheciam conseguiu, no fim de agosto, a proeza de estampar em sua capa uma militante do bloco negro com o rosto coberto de vermelho, numa capa com fundo vermelho. Seis meses depois, agora é a vez da revista Época revelar ao grande público um novo líder, desta vez não das manifestações de massa, mas da “pequena minoria de vândalos” que fazem uso da tática black bloc.

Este líder seria o jornalista Leonardo Morelli, apontado pela reportagem como coordenador da ONG Defensoria Social, “braço visível e oficial que apoia os Black Blocs”, que seria responsável pela captação de recursos para o financiamento das atividades do grupo. Uma dessas ongs, o Instituto St Quasar, teria repassado € 100 mil aos cofres da entidade. Morelli cita entre seus doadores organizações como as suíças La Maison des Associations Socio-Politiques, sediada em Genebra, e Les Idées (ambas negaram as doações) e afirma que a Defensoria Social também foi abastecida pelo Fundo Nacional de Solidariedade, da CNBB (que também nega os repasses) e cita entre seus contatos os padres católicos Combonianos e a Central Operária Boliviana.

Morelli já foi citado como líder anarquista (sic) pela mesma publicação em outubro. Segundo a coluna do jornalista Felipe Patury, Morelli se apresenta como líder e porta-voz de um grupo anarquista que teria assumido ser proprietário de 119 bananas de dinamite apreendidas pela polícia paulista em Guarulhos. Os explosivos seriam usados em um protesto em novembro denominado “um dia de fúria”.

O que possuem em comum os personagens citados? Nossa incapacidade de pensar a política fora do jogo institucional e sem a figura do líder.

Durante as jornadas de junho, uma crítica recorrente às manifestações que se alastravam pelo país dizia respeito à falta de liderança. Num breve momento, alguns integrantes do Movimento Passe Livre (MPL), grupo que havia convocado as manifestações pela redução na tarifa do transporte público ocupou esse lugar. Porém, com a revogação do aumento em diversas cidades brasileiras, o MPL tomou a decisão de não convocar outras manifestações. Desde então não tem sido poucos os que tentam preencher este vácuo de poder, seja pela apropriação dos movimentos por partidos de cores diversas, seja pela fabricação midiática de “líderes” que não são nem de esquerda, nem de direita e muito pelo contrário. O problema é que o surgimento desses novos atores no cenário político nacional vem carregado de um desconhecimento gritante a respeito da política - seja ela institucional ou não – e de incoerências risíveis que, por ingenuidade ou má-fé, têm sido sumariamente ignoradas.

Assim como a visão de democracia defendida pela nova geração de caras-pintadas não é exatamente democrática, as informações a respeito de supostos líderes anarquistas não são condizentes com princípios básicos dessa filosofia política, que incluem horizontalidade, autogestão, solidariedade e amizade. Sem deuses e sem mestres, já diria um clássico lema anarquista. Portanto, a própria de ideia de líder anarquista já é uma contradição em termos.

Falando em contradições, entre as fontes de financiamento do tal “braço visível e oficial” que apoia os black bloc, a ong Defensoria Social, estariam a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e “padres colombianos” estariam entre os contatos internacionais do grupo. Mas espera um pouco, anarquistas associados à Igreja? A CNBB negou os repasses à entidade, assim como as duas ongs suíças citadas na matéria da Época (La Maison des Associations Socio-Politiques e Les Idées) como financiadoras dos black blocs brazucas.

Por fim, não há informações sobre a entidade supostamente responsável pela doação de € 100 mil para “o braço visível e oficial” de apoio aos BB, o Instituto St Quasar, segundo a reportagem, uma ong ligada a causas ambientais. Considerando que a suposta doação não trata de uma quantia desprezível (cerca de R$ 300 mil) e devida à falta de informações adicionais mínimas, como país de origem, tempo de existência, área de atuação decidi saber um pouco mais sobre o tal instituto. Entretanto a entidade não possui endereço na Internet e, nos sites de busca, foram encontradas apenas duas ocorrências sobre o Instituto St Quasar (que não se referiam à matéria da revista Época).

A primeira é uma notícia sobre uma ação conjunta ambiental realizada por municípios do estado de São Paulo realizada no dia 22 de março, no Dia Mundial da Água. A ação teria sido promovida em parceira entre Instituto St. Quasar e Movimento Grito das Águas, do qual Morelli foi (é?) coordenador. Contudo, o texto não apresenta nenhum informação adicional sobre a origem e atividades dessa entidade. A segunda ocorrência a respeito do Instituto St. Quasar aparece em site de CNPJs. De acordo com as informações deste endereço, o Instituto St. Quasar é uma empresa de “pesquisa e desenvolvimento experimental em ciências sociais e humanas” criada em janeiro de 2012, com sede em Mongaguá, litoral paulista.

Por fim, se procede a informação publicada pela coluna de Felipe Patury, sobre Morelli ser o líder de um grupo anarquista em Guarulhos que teria assumido a posse de 119 bananas de dinamite, então estamos diante não apenas do mais ocupado e centralizador líder-de-ongs-treinador-de-black-blocs da nossa história, como temos o melhor time de advogados do país. Pensem comigo: se durante as manifestações tanta gente foi presa por porte de vinagre e em diversas cidades manifestantes têm sido levados para penitenciárias apesar da falta de provas e de negarem envolvimento em atos de vandalismo, muito me estranha que alguém que teria assumido a posse de artefatos explosivos esteja em liberdade. Em tempo: a matéria de capa da revista Época é assinada por Leonel Rocha, repórter da coluna de Patury e assina a nota sobre as dinamites.

Na semana passada a Polícia Federal divulgou a identificação de 130 pessoas pelas redes sociais que são suspeitas de incitar violência em protestos, todas essas revelações de treinamento paramilitares, financiamento internacional e posse de explosivos pela própria pessoa que poderia sofrer com as consequências legais desses atos parecem muito suspeitas. Afinal, qual o interesse em definir os anarquistas como bodes expiatórios?

A reportagem de Época foi recebida com chacota e revolta nas páginas do Black Block RJ e Black Bloc SP negam tanto o recebimento de fundos de quaisquer financiamento, nacional ou estrangeiro e a existencia de um líder para a tática. Afinal, se os adeptos da tática precisassem de visibilidade, não faria sentido esconder o rosto. Independente disso, cabe estar atento não para o que o que nos informa a grande imprensa, mas sobretudo aos pontos que ela de forma muito relapsa deixa de esclarecer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário