A ânsia da
grande imprensa em apontar líderes – ou culpados – carrega
consigo nossa incapacidade de pensar a política fora da lógica da
representação e está repleta de incoerências risíveis
Em junho deste ano,
quando o país foi tomado por uma onda inédita e convulsiva de
manifestações de rua, a revista Veja apresentou a seus leitores um
líder. Maycon Freitas, que segundo a revista, havia reunido milhares
de pessoas em manifestações no Rio de Janeiro por meio da página
UCC- União Contra a Corrupção, no Facebook. Freitas sintetizava
perfeitamente o gigante que acordou: segundo suas declarações,
sua motivação para ir às ruas não estava relacionada a alguns
centavos, mas a construir uma democracia melhor e, consequentemente,
um estado melhor.
Com o rosto pintado
de verde e amarelo e usando as cores da bandeira nacional, Freitas
era apenas um dos milhares de jovens que foi às ruas gritar “sem
partido” com vistas a melhorar a democracia, ignorando que a
existência de partidos livres é uma das premissas básicas dos
regimes democráticos. De modo semelhante, o engajado ativista
reproduz, sem pudores, a máxima reacionária “direitos humanos
para humanos direitos” e apoia as agressões da polícia aos black
bloc, ignorando que a existência de direitos humanos ser parte
importante para a constituição de sociedades democráticas e que,
há algum tempo, existe uma uma separação entre os poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário e que a punição não é
atribuição dos efetivos policiais.
Pegando carona na
onda das manifestações, a mesma publicação que apresentou aos
movimentos populares um líder que eles ainda não conheciam
conseguiu, no fim de agosto, a proeza de estampar em sua capa uma
militante do bloco negro com
o rosto coberto de vermelho, numa capa com fundo vermelho.
Seis meses depois, agora é a vez da revista Época revelar ao grande
público um novo líder, desta vez não das manifestações de massa,
mas da “pequena minoria de vândalos” que fazem uso da tática
black bloc.
Este líder seria o
jornalista Leonardo Morelli, apontado pela reportagem como
coordenador da ONG Defensoria Social, “braço visível e oficial
que apoia os Black Blocs”, que seria responsável pela captação
de recursos para o financiamento das atividades do grupo. Uma dessas
ongs, o Instituto St Quasar, teria repassado € 100 mil aos cofres
da entidade. Morelli cita entre seus doadores organizações como as
suíças La Maison des Associations Socio-Politiques, sediada em
Genebra, e Les Idées (ambas negaram as doações) e afirma que a
Defensoria Social também foi abastecida pelo Fundo Nacional de
Solidariedade, da CNBB (que também nega os repasses) e cita entre
seus contatos os padres católicos Combonianos e a Central Operária
Boliviana.
Morelli já foi
citado como líder anarquista (sic) pela mesma publicação em
outubro. Segundo a coluna do jornalista Felipe Patury, Morelli se
apresenta como líder e porta-voz de um grupo anarquista que teria
assumido ser proprietário de 119 bananas de dinamite apreendidas
pela polícia paulista em Guarulhos. Os explosivos seriam usados em
um protesto em novembro denominado “um dia de fúria”.
O que possuem em
comum os personagens citados? Nossa incapacidade de pensar a política
fora do jogo institucional e sem a figura do líder.
Durante as jornadas
de junho, uma crítica recorrente às manifestações que se
alastravam pelo país dizia respeito à falta de liderança. Num
breve momento, alguns integrantes do Movimento Passe Livre (MPL),
grupo que havia convocado as manifestações pela redução na tarifa
do transporte público ocupou esse lugar. Porém, com a revogação
do aumento em diversas cidades brasileiras, o MPL tomou a decisão de
não convocar outras manifestações. Desde então não tem sido
poucos os que tentam preencher este vácuo de poder, seja pela
apropriação dos movimentos por partidos de cores diversas, seja
pela fabricação midiática de “líderes” que não são nem de
esquerda, nem de direita e muito pelo contrário. O problema é que o
surgimento desses novos atores no cenário político nacional vem
carregado de um desconhecimento gritante a respeito da política -
seja ela institucional ou não – e de incoerências risíveis que,
por ingenuidade ou má-fé, têm sido sumariamente ignoradas.
Assim como a visão
de democracia defendida pela nova geração de caras-pintadas não é
exatamente democrática, as informações a respeito de supostos
líderes anarquistas não são condizentes com princípios básicos dessa
filosofia política, que incluem horizontalidade, autogestão,
solidariedade e amizade. Sem deuses e sem mestres, já diria um
clássico lema anarquista. Portanto, a própria de ideia de líder
anarquista já é uma contradição em termos.
Falando em
contradições, entre as fontes de financiamento do tal “braço
visível e oficial” que apoia os black bloc, a ong Defensoria
Social, estariam a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) e “padres colombianos” estariam entre os contatos
internacionais do grupo. Mas espera um pouco, anarquistas associados
à Igreja? A CNBB negou os repasses à entidade, assim como as duas
ongs suíças citadas na matéria da Época (La Maison des
Associations Socio-Politiques e Les Idées) como financiadoras dos
black blocs brazucas.
Por fim, não há
informações sobre a entidade supostamente responsável pela doação
de € 100 mil para “o braço visível e oficial” de apoio aos
BB, o Instituto St Quasar, segundo a reportagem, uma ong ligada a
causas ambientais. Considerando que a suposta doação não trata de
uma quantia desprezível (cerca de R$ 300 mil) e devida à falta de
informações adicionais mínimas, como país de origem, tempo de
existência, área de atuação decidi saber um pouco mais sobre o
tal instituto. Entretanto a entidade não possui endereço na
Internet e, nos sites de busca, foram encontradas apenas duas
ocorrências sobre o Instituto St Quasar (que não se referiam à
matéria da revista Época).
A primeira é uma
notícia sobre uma ação conjunta ambiental realizada por municípios
do estado de São Paulo realizada no dia 22 de março, no Dia Mundial
da Água. A ação teria sido promovida em parceira entre Instituto
St. Quasar e Movimento Grito das Águas, do qual Morelli foi (é?)
coordenador. Contudo, o texto não apresenta nenhum informação
adicional sobre a origem e atividades dessa entidade. A segunda
ocorrência a respeito do Instituto St. Quasar aparece em site de
CNPJs. De acordo com as informações deste endereço, o Instituto
St. Quasar é uma empresa de “pesquisa e desenvolvimento
experimental em ciências sociais e humanas” criada em janeiro de
2012, com sede em Mongaguá, litoral paulista.
Por fim, se procede
a informação publicada pela coluna de Felipe Patury, sobre Morelli
ser o líder de um grupo anarquista em Guarulhos que teria assumido a
posse de 119 bananas de dinamite, então estamos diante não apenas
do mais ocupado e centralizador
líder-de-ongs-treinador-de-black-blocs da nossa história, como
temos o melhor time de advogados do país. Pensem comigo: se durante
as manifestações tanta gente foi presa por porte de vinagre e em
diversas cidades manifestantes têm sido levados para penitenciárias
apesar da falta de provas e de negarem envolvimento em atos de
vandalismo, muito me estranha que alguém que teria assumido a posse
de artefatos explosivos esteja em liberdade. Em tempo: a matéria de
capa da revista Época é assinada por Leonel Rocha, repórter da
coluna de Patury e assina a nota sobre as dinamites.
Na semana passada a
Polícia Federal divulgou a identificação de 130 pessoas pelas
redes sociais que são suspeitas de incitar violência em protestos,
todas essas revelações de treinamento paramilitares, financiamento
internacional e posse de explosivos pela própria pessoa que poderia
sofrer com as consequências legais desses atos parecem muito
suspeitas. Afinal, qual o interesse em definir os anarquistas como
bodes expiatórios?
A reportagem de
Época foi recebida com chacota e revolta nas páginas do Black Block
RJ e Black Bloc SP negam tanto o recebimento de fundos de quaisquer
financiamento, nacional ou estrangeiro e a existencia de um líder
para a tática. Afinal, se os adeptos da tática precisassem de
visibilidade, não faria sentido esconder o rosto. Independente
disso, cabe estar atento não para o que o que nos informa a grande
imprensa, mas sobretudo aos pontos que ela de forma muito relapsa
deixa de esclarecer.
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