domingo, 6 de janeiro de 2013

Uma linda mulher ou Como ensinar a uma geração todos os clichês de gênero e submissão



Nos últimos meses acompanhei algumas discussões na Internet sobre a febre literária do momento 50 Tons de Cinza. No começo pensei que era uma sacanagenzinha light pra um público caretinha, por isso não me despertou o menor interesse. Contudo, depois li alguns comentários e fiquei sabendo que o livro é um desses libelos machistas de deixar qualquer feminista de cabelo em pé. 

A história, pra quem ainda não sabe do que se trata, é um desses contos de fadas modernos, em que a mocinha conhece um milionário bonitão e no fim os dois vivem felizes para sempre, só que no meio disso tem umas paradas sadomasoquistas leves, pra não chocar os leitores. Só que nesse ínterim o rapaz cobre a moça de presentes caros e ela, que até então era virgem, vai cedendo às praticas sexuais pouco ortodoxas que o namorado curte pra que ele não enjoe dela, como aconteceu com outras mulheres que vieram antes. 



Ou seja, é um amontoado de clichês reforçando a ideia do homem rico que cobre a mulher de presentes, de que as mulheres estão sempre competindo umas com as outras, de que vale a pena tudo na cama desde que seja por amor. De repente me veem na cabeça milhares de manuais do sexo lacrado de revistas femininas que ensinam como enlouquecer seu homem na cama para que ele se case com você. No fundo a ideia é que o sexo não é algo que a mulher faça pelo seu próprio prazer, mas porque desse jeito vai conseguir amarrar um cara.


Li em algum lugar que estão filmando, o que me fez pensar que há alguns filmes que marcam as gerações em termos de educação sentimental e de educação de papeis de gênero. Pra mim, o filme que ensinou a minha geração, nascida nos anos 80 e que cresceu nos anos 90 foi Uma Linda Mulher. Quem na faixa dos 30 anos não se lembra de Julia Roberts se esbaldando nas lojas na Rodeo Drive ao som de Pretty Woman e da cena em que ela se vinga da vendedora esnobe? Na época eu não prestava muita atenção, mas para além da trama estapafúrdia do conto de fadas entre a prostituta de lindíssima e o milionário bonitão carente havia muita coisa que estava educando as meninas da minha geração a respeito do que é ser mulher. Revi o filme esses dias. Dei umas boas risadas, mas em geral me deu vontade de chorar.

São tantos clichês de gênero que eu não sei nem por onde começar. A prostituta de rua eu em dois dias frequenta ambientes de alta classe reforçando a ideia de que a mulher deve ser uma dama fora de casa e uma puta na cama; a euforia no momentos de fazer compras reforçando a ideia de que mulher gosta mesmo é de fazer compras. Embora a personagem seja uma profissional do sexo, ela nunca parece gostar muito da coisa, o que me lembra o mito difundido pelos mascus que mulher não gosta muito de sexo e só o faz como meio de obter amor. Não acho que a vida de uma prostituta deva ser fácil, mesmo quando o seu cliente é um bonitão super cavalheiro, afinal continua sendo trabalho. 

Mas me incomoda sobremaneira o fato de ela só decidir largar a prostituição depois que ele diz que ela tem potencial, a incapacidade dela perceber seu próprio valor sem que os diversos homens que estão na trama façam isso por ela: o velhinho rico, o gerente do hotel, o próprio personagem do Richard Gere. É a ideia do complexo de Cinderela: uma hora vai surgir um homem que resolverá todos os seus problemas e a partir de então a única decisão que uma mulher terá que tomar na vida será que sapato combina com aquele vestido.

E a ópera, gente? Digamos que você seja um ricaço que contratou uma prostituta gata para ficar com você durante uma semana. O que você faz? Vai para o hotel compensar seu investimento ou coloca a moça num avião e a leva para assistir à ópera? É uma demonstração de poder e riqueza tão gratuita que chega a ser cômico, mas depois eu fico pensando no papel de educação da cena. Tudo bem, querida, eu até posso ter me apaixonado pela sua beleza e dotes de cama, mas, bitch, please, vê se aprende umas coisinhas da cultura super refinada que eu consumo pra gente ter o que conversar.
Contudo, o que me deixa mais chocada é como em poucos dias de convivência, uma mulher que no mínimo deveria saber se defender sozinha – porra, ela faz ponto nas ruas de LA! – se torna uma criaturinha indefesa porque tomou um banho de loja e arranjou um macho para cuidar dela. A forma como ela reage completamente passiva diante dos assédios do escrotossauro amigo do cliente-amante é revoltante. Uma mulher com essa história no mínimo deveria saber gritar, dar um soco na cara, uma navalhada na cara, sei lá. Reage, filha! Mas não. A mulher só não é estuprada porque de novo o príncipe encantado surge e a salva.

Por fim, temos um final feliz e o final feliz é o que? Casamento! Porque o amor não basta. A proposta dele, de levar ela com ele e montar um apartamento, é bem paternalista, é verdade. Mas nada me choca mais depois do festival de clichês machistas que vimos até aqui. E convenhamos que pra duas pessoas que se conheciam há uma semana até que é bem razoável. Mas aí o que acontece? Ela fica ofendida e ele tem que reencenar o papel do príncipe encantado no cavalo branco salvando a princesa, como se todos os problemas e objetivos da vida se realizassem com o matrimônio.

Daí a gente olha pra mulheres de 30 anos que são inteligentes, independentes e lindas e que estão aí sofrendo porque ainda não casaram e não é difícil entender por quê. A gente é ensinada desde que nasce que só vai ser feliz depois que o conto de fadas acontecer com a gente!
É por essas e outras que quando for mãe não contarei nenhum.


2 comentários:

  1. Comecei a ler o post que estava aberto no meu computador e achei a escrita muito familiar, rs.
    Aí que me toquei que era teu o blog.
    Tem a cena do jantar de negócios, onde a participação brihante da mulher na mesa se restringiu ao fato dela deixar escapar o escargot e o maître o apanha.
    Cara, eu a-do-ra-va Uma Linda Mulher quando era criança/adolescente, também impensável uma análise crítica de contos de fada então. Afinal, quem não se deliciava com a cena da vingancinha, rs.

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  2. Descobri seu blog na madruga. Excelente texto...o mais impressionante de toda a questão de "cinderelas contemporâneas", é que talvez essa "revolução feminista" das últimas décadas...tenha sido mais uma forma de chamar a atenção masculina, como antes eram os pezinhos, talvez? Fomos lá e fizemos.....mas no fundo queremos um Christian Grey? Como assim? kkkkkkkkkk

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