terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Publiquei ontem um texto que fala da forma como a violência contra a mulher é banalizada em nossa sociedade. Hoje reproduzo o texto da irmã feminista Maíra Kubik, que narra de forma corajosa e em primeira pessoa a traumática experiência de ser agredida por ser mulher. No texto dela fica muito claro que a violência de gênero não está localizada em uma classe social ou a países subdesenvolvidos, que não é exceção e - o mais terrível - é que pode acontecer a qualquer uma de nós. 


Publicado originalmente em: http://mairakubik.cartacapital.com.br

A primeira vez que eu apanhei

Campanha "O valente não é violento", da ONU Mulheres
Campanha “O valente não é violento”, da ONU Mulheres
Eu nunca tinha apanhado na vida. Ao menos não literalmente. Foram 31 anos inocentes e imunes, interrompidos bruscamente por um tapa na cara.
Aconteceu em setembro, final do verão por aqui. Meus óculos de sol caíram imediatamente no chão e, por alguns segundos, eu perdi a referência de onde estava. Quando voltei a mim, minha primeira reação foi não ter reação. Lembro-me de permanecer atônita. Em seguida, virei a cabeça tentando localizar o sujeito, mas ele já havia sumido na multidão. Eu estava em uma esquina movimentada da cidade e fui pega completamente desprevenida.
Tomei o metrô tentando freneticamente devolver com os dedos as lágrimas que insistiam em cair de dentro dos olhos. Só conseguia pensar que eu era mulher, estava sozinha e vestia uma blusa regata. E que a combinação desses fatores poderia ter motivado aquele homem de vestimentas religiosas tradicionais. Quando abri a porta de casa, chorei até a exaustão.
Poucos dias depois veio a segunda agressão, dessa vez em forma de bofetada no braço. De novo, a sensação de perplexidade absoluta. E outra vez, perdi a pessoa para a multidão. Mas eu tinha então uma certeza: sim, eu havia apanhado porque era mulher. Afinal, aquele senhor que reclamava que as bicicletas estavam muito próximas da faixa de pedestres poderia ter agredido qualquer outro ciclista em volta, homem. E ele escolheu a mim.
Com uma semana de diferença, dois sujeitos absolutamente desconhecidos sentiram que poderiam bater em uma mulher na rua — eu — e assim o fizeram. Para eles, deveria ser algo ”natural”. Para mim, foi uma experiência muito traumática. A sensação de vulnerabilidade era tamanha que eu comecei a achar que eu poderia sofrer qualquer coisa de ruim, como por exemplo ser empurrada para baixo do trem quando ele estivesse chegando na plataforma.
Escrever sobre esses episódios por um bom tempo me pareceu impossível. Indizível. Faço agora por acreditar que compartilhar histórias como essa sempre ajuda a refletir sobre o quanto a violência contra as mulheres é estrutural dentro de nossa sociedade, atravessando todos os locais, situações, classes, idades e etnias.
Assim como aconteceu comigo, poderia acontecer com qualquer uma. E poderia ser bem pior: muitas de nós sofremos cotidianamente violências doméstica e psicológica, assédios moral e sexual, estupros ou somos assassinadas em decorrência do simples fato de sermos mulheres.
Vivemos em uma sociedade em que determinadas marcas e diferenças são utilizadas como pretexto para estabelecer uma hierarquia entre seres humanos. Assim como xs negrxs foram apartados na África do Sul a partir das mais absurdas justificativas, as mulheres são até hoje consideradas inferiores. Não são situações iguais, obviamente, mas a lógica implicada é a mesma. Em ambas, há um processo onde a desigualdade construída a partir de condições sociais, culturais e históricas adquire uma vestimenta de “natural”, como se sempre houvesse sido daquela maneira. O que está oculto, porém, é o verdadeiro sentido dessas relações de poder: o grupo que está em cima se apropria daquele que está embaixo.
Dentro dessa perspectiva, as mulheres são tomadas como um todo. Da mesma maneira como xs escravxs, elas não cedem apenas a sua força de trabalho, mas sim o seu indivíduo inteiro. Ao mesmo tempo e de maneira contínua estão presas à reprodução, à criação dxd filhxs, ao cuidado com xs idosxs e com o lar, à satisfação sexual do Outro, a fornecer-lhe conforto, apoio e equilíbrio psíquico e, finalmente, à ocupar posições menos importantes ou bem remuneradas no mercado de  trabalho.
As mulheres formam uma classe, apropriada privada — via casamento e/ou família — e coletivamente — por meio das igrejas, da vida comunitária, da família ampliada para além da célula inicial etc. E dentro desse sistema onde não detêm a propriedade sobre seu corpo e que são vistas de maneira indistinta como um “tipo” de gente ou coisa inferior, é “natural” que aqueles que as possuem sintam-se no direito de bater não apenas em suas mulheres como em quaisquer mulheres. Inclusive para lembrar-lhes, com alguma frequência, qual é o seu lugar dentro da hierarquia.
Como sairmos, então, dessa situação?
Bom, eu quero fazer um curso de defesa pessoal para tentar ter outras reações — e mais rápidas — do que simplesmente ficar chocada se algo assim acontecer de novo. Muitos grupos feministas e de mulheres oferecem oficinas desse tipo gratuitamente — mais um indício, aliás, do quanto nos sentimos agredidas.
A denúncia é também uma arma poderosíssima. No caso da violência doméstica, a Lei Maria da Penha é uma grande aliada para o agressor ser responsabilizado e punido. E campanhas de conscientização são sempre bem-vindas.
Mas, para mim, essa violência estrutural só vai acabar de fato quando não tivermos mais divisões em classes. Basta olharmos para países com índices muito melhores que os nossos em termos de distribuição de renda e educação e percebermos que, infelizmente, a violência contra a mulher, motivada por ela ser mulher, persiste.
Ou, em um resumo bem simplista, eu apanhei em Paris.

Em tempo: hoje, Dia Internacional dos Direitos Humanos e último dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, a ONU Mulheres promove uma blogagem coletiva da recém-lançada campanha O VALENTE NÃO É VIOLENTO. Este blog junta-se aos esforços para dizer: basta de violência contra a mulher!  Mais informações: https://www.facebook.com/ovalentenaoeviolento e http://www.ovalentenaoeviolento.org.br/

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Atitudes violentas contra mulheres são vistas como normais, mostra estudo

SÃO PAULO – Pesquisa do Instituto Avon e do Datapopular divulgada nesta sexta-feira revela que muitas atitudes violentas contra as mulheres são vistas pelo homem como naturais em um relacionamento.
De acordo com o levantamento, ao serem questionados diretamente se tiveram atitude violenta contra a parceira ou ex-parceira, apenas 16% dos homens admitiram que sim, o que equivale a 8,8 milhões de pessoas. Mas quando os entrevistadores listaram atitudes violentas contra a mulher, como xingar, empurrar, humilhar em público e ameaçar com palavras, 56% dos homens admitiram que já cometeram alguma dessas posturas.
- Para se ter uma ideia, apenas 35% dos homens acham que a mulher deve procurar a delegacia da mulher no caso de ele a impedir de sair de casa – disse Renato Meirelles, presidente do Datapopular.
A pesquisa revelou também que a maioria das atitudes agressivas foi cometida mais de uma vez e constatou que 41% dos brasileiros, entre homens e mulheres, conhecem ao menos um homem que foi violento com sua parceira, o que equivale a 52 milhões de pessoas.
O estudo mostra que muitas vezes o homem responsabiliza a mulher pela violência. E revelou que 29% deles disseram que “o homem só bate porque a mulher provoca”. E 23% afirmaram que “tem mulher que só para de falar se levar um tapa”.
De acordo com o levantamento, 12% dos homens acreditam que “se a mulher trai o marido ele tem razão de bater nela”.
O estudo mostrou que 67% dos autores de violência viram os pais discutirem na infância, enquanto entre os não agressores o índice é de 47%. Além disso, entre os agressores, 21% presenciaram uma agressão física. Este índice entre os não agressores foi de 9%.
Questionados sobre as razões de a violência surgir no relacionamento, os homens listaram ciúme, falta de respeito, de diálogo e de amor.
A pesquisa mostrou que 53% dos homens atribuem à mulher a responsabilidade pelo sucesso do casamento; 69% deles não concordam que a mulher saia com amigos sem sua companhia e 46% acham que é inaceitável que ela use roupas justas e decotadas. A mulher é vista como responsável pelo trabalho doméstico: 89% dos entrevistados disseram que é inaceitável a companheira não manter a casa em ordem.
Sobre a Lei Maria da Penha, 35% dos homens disseram que desconhecem parcial ou total a norma. E 37% afirmam que por causa da lei as mulheres os desrespeitam mais.
- É lamentável ainda vivermos numa sociedade machista, sexista e patriarcal em pleno século 21 – disse a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, Eeonora Menicucci.
A pesquisa foi feita entre agosto e setembro de 2013, em duas etapas. Na primeira foram entrevistadas 955 homens e 505 mulheres maiores de 16 anos de idade, em 50 cidades de todo país. Numa segunda etapa, foram ouvidos 13 especialistas e seis homens autores de violência.

Fonte: O Globo 

Publicado originalmente em http://oglobo.globo.com/pais/atitudes-violentas-contra-mulheres-sao-vistas-como-normais-mostra-estudo-10920770#ixzz2mzcJHUU0

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Ufa, era trollagem!

Então o lançamento do Tubby era um hoax? Ufa, que bom saber. O aplicativo, anunciado como uma vingança ao bobinho Lulu, prometia revelar aos seus usuários detalhes íntimos sobre a conduta sexual das mulheres: se deu de primeira, se curte tapas, sexo anal ou se “engole tudo”. Os dois aplicativos levantaram intensos debates nas redes sociais e rodas de bar sobre privacidade, objetificação e machismo. Agora os criadores do app que nunca existiu dizem que se tratou de uma brincadeira, um protesto contra a objetificação e exposição da intimidade de outras pessoas. Ah, cês juram? 

Bom, primeiro deixa eu ir lá fora esmurrar meu saco de areia durante 15 minutos até passar a minha raiva porque era só o que me faltava ozômi querendo dar lição sobre objetificação e exposição da intimidade e tentar colocar tudo no mesmo balaio de gato, porque até onde eu chequei as vítimas dos revenge porn que tiveram suas vidas arruinadas eram todas mulheres. Que bom que não teremos mais aplicativo que de cara condenava as mulheres que se recusaram a participar acusando-as de ter medo do que haviam feito “no verão passado”! Agora voltemos à programação normal de ser objetificadas em tudo e o tempo todo, só que sem aplicativo.

Como se as mulheres nunca tivessem sido avaliadas de acordo com a sua conduta sexual, com o número de parceiros ou com as coisas que gosta de fazer na cama, como se não fossem divididas entre mulher pra namorar/casar e vadias/putas/pra uma noite só. Boqueteira, engole tudo, dá a bunda, deu de primeira, safada, todo mundo já pegou, rodada, vadia, piranha, depois reclama que é estuprada. Encalhada, mal-amada, mal-comida, isso é falta de pica, deve estar de TMP, deve estar menstruada, deveria ser estuprada. E aí gostosa! É gostosa, mas fica se exibindo, deve ser puta, não se vestiria assim se não quisesse chamar a atenção dos homens, depois reclama se é estuprada. É gata e AINDA é inteligente. Uma mulher daquela não precisa nem saber escrever. É inteligente, mas devia se arrumar um pouco, né? Mulher sem vaidade não dá! Sai daqui sua gorda nojenta. Depilação é questão de higiene. Deixar o cabelo ficar branco é ser relaxada. Mulher de salto é outra coisa. É fútil, só pensa em dieta, academia e shopping. Mulheres, coloquem uma coisa na cabeça de vocês, nós homens ________________________________ (insira aqui qualquer cagação de regra sobre como você deve conduzir a sua vida). Já deu pra todo mundo, não dá pra namorar uma mulher dessas, é pedir pra ser corno. É muito puritana, depois reclama que é traída. Mulher só pensa em casamento, é por isso que os caras fogem. Mulher tem que ser delicada, mulher tem que ser sexy sem ser vulgar. O homem é a cabeça, mas a mulher é o pescoço. Mulher não serve pra ser chefe. Um monte de mulher trabalhando junta, tinha que dar briga. Deu o golpe da barriga. Deu o golpe do baú. Pra que teve filho se vai trabalhar o dia todo? Tem filho depois fica cobrando pensão. Não são direitos iguais? Sai dando por aí e depois quer abortar. Sai dando por aí e depois joga criança no lixo. Sai dando por aí e depois quer que o governo sustente. Na hora de fazer não gritou. Não se dá o respeito.

Assim como uma garota ao fim de um pornô gang bang eu olho para os criadores do app fake, exausta, fodida e com a cara esporrada e digo: obrigada, por esta valiosa lição sobre objetificação, por colocarem numa linguagem que nós mulheres somos capazes de entender. Era trollagem, ufa!
Agora as mulheres podem voltar à rotina normal de julgamentos que só partem da sociedade e da cultura machista.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Detesto fim de ano

Detesto luzes de natal, trem e metrô cheio de gente carregando sacola, detesto as ruas lotadas de gente fazendo compras como se a vida dependesse disso, detesto ter que fazer compras, porque as outras pessoas não são anticapitalistas e ficam magoadas se não recebem presentes.

Detesto luzinhas natalina, musiquinhas natalina, Papai Noel, Mamãe Noel, Santa Claus, o polo norte e os duendes. Detesto mensagens sobre recuperar o "verdadeiro sentido do Natal", cartões de natal, missa do galo, o Papa, o Vaticano, a Igreja Católica apostólica romana e o cristianismo.

Detesto apresentação de coral, confraternização, festa da firma, amigo-secreto, ter que decidir com três meses de antecedência saber onde vou passar o ano novo, detesto ter que fazer alguma coisa no ano novo. Detesto sidra, a palavra reveillon, comida de ceia, ter que visitar várias pessoas e ser obrigada a comer as coisas da ceia - se não comer é desfeita. Detesto acabar comendo até passar mal.

Detesto ter que me arrumar toda pra dar rolê na sala, acho desejar feliz natal uma formalidade sem sentido e desnecessária, detesto as redes sociais cheias de mensagens edificantes e/ou piadinhas de gente metida a esperta e principalmente, detesto quem usa rede social pra falar de Jesus. Detesto promessas de ano novo, detesto gente falando que o ano passou rápido, detesto gente falando que esse ano não acaba porque a merda do ano dura exatamente o tempo de um ano.

Detesto as férias escolares porque todos os lugares ficam cheios de crianças insuportáveis acompanhadas de pais insuportáveis. Há crianças legais, filhas de pessoas legais, mas elas são poucas, a maior parte das crianças é tão detestável quanto os adultos com o agravante que não se pode bater nelas.

Detesto fim de ano. O cansaço físico e mental, as pessoas na academia fazendo “projeto verão”, os alunos chorando nota e a sensação de que neste período o mundo consegue ficar ainda mais estúpido, hipócrita, consumista e vazio.

A única coisa boa do fim do ano é que eu entro de férias daqui a duas semanas.

domingo, 24 de novembro de 2013

Em defesa do Lulu


Na primeira vez que ouvi do Lulu achei idiota, não ofensivo. Um aplicativo em que mulheres avaliam os homens dando notas e adjetivos sob a forma de hashtag. Pareceu-me bobo, adolescente. Imaginei algo muito mais explícito do que realmente é, que fosse falar de tamanhos de paus, gostos sexuais pouco ortodoxos, broxadas, daí em diante. Não resisti à curiosidade e entrei. E pra minha surpresa, achei divertidíssmo. Não era nada do que eu pensava.

Pra começar, o tal aplicativo que só teoricamente só poderia ser baixado por mulheres pode ser baixado por qualquer um. O site de download não perguntou meu gênero e você entra pelo login do Facebook. Ou seja, qualquer um com uma conta nessa rede pode entrar. Não dá pra levar a sério. Além disso, muito mais recatado do que eu imaginava. As avaliações não se restringem a sexo e podem ser feitas por pessoas com diferentes relações com o rapaz em questão: pela mulher interessada naquele cara, pela namorada/ficante atual, ex-namorada/ex-ficante e amiga. As perguntas e os itens avaliados são selecionados de acordo com a categoria de quem responde.

Os perfis são avaliados por uma série de critérios e quem avalia não é obrigada a responder todos os itens, que incluem perguntas sobre senso de humor, educação, caráter, comportamento, inteligência, e sim, beleza física e sexo, mas nada de tamanhos de pirocas e notas pra práticas sexuais, pra minha total decepção.

Assim que você loga um painel de perfil de amigos do Facebook aparece na sua tela e as fotos dos que possuem avaliações Minha segunda surpresa foi saber que o site mantém muito mais avaliações positivas que negativas. O site gera uma nota média pros avaliados somando todos os critérios e esta nota aparece sobre a foto do perfil. Aliás, dois dos meus amigos que tinham recebido avaliações eram gays, tinham recebido avaliações de amigas, descritos como pessoas gentis e inteligentes.

Mas vamos aos hétero. Mais uma surpresa. Não tinham sido meus amigos mais bonitos e populares que tinham recebido reviews, mas homens fora do padrão de beleza e em geral muito tímidos e reservados e que na maioria das vezes recebiam elogios de pessoas que já tinham ficado com eles, sobre serem educados, cheirosos, inteligentes, atenciosos e sim, beijarem bem e serem bons de cama, o tipo de coisa que em geral as mulheres contam umas pras outras sobre homens com quem já ficaram, estão ficando ou pretendem ficar. Coisas do tipo como responder mensagens rápido, ligar no dia seguinte, dormir de conchinha, se a pessoa fica e some, se sabe cozinhar e sim, o tamanho do pau, porque mulheres hétero em geral adoram falar de tamanho de pau de quem já pegou, tá pegando ou quer pegar.

Sim, passei a tarde olhando os rewiews das pessoas que eu conheço e me diverti muito. Porque é algo muito bobo mesmo. As críticas são mais sobre comportamento do que qualquer outra coisa: ser chato, crianção, muito vaidoso, contar piadas ruins, ter amigos “losers”, demorar pra tomar iniciativa ou notar interesse de uma mulher ou, ao contrário, ser inteligente, divertido, carinhoso, gentil, não ter vergonha de ser fofo, saber beber sem cair, respeitar as mulheres, se é legal com os pais da mulher que está saindo, se é responsável, se saber se virar sozinho seja pra se alimentar ou cuidar do espaço doméstico. Mas mesmo assim eu fiquei contente ver amigos meus recebendo elogios, saber que são considerados legais e/ou gostosos pelas pessoas que já ficaram com eles. E achei engraçado descobrir algumas coisas porque eu gosto de fofoca picante, me julga aí.

Trocando em miúdos, é indiretamente um aplicativo de paquera. Pra saber coisas sobre o cara que você está interessada é legal e tem pegada, talvez até usar isso pra puxar papo. Pra saber se outras mulheres falam bem de pessoas que você tem interesse ou mesmo dos seus amigos. Claro que tem gente que pode usar pra vingancinha. Mas até os comentários ruins estão sujeitos à avaliação, você pode responder se aquilo é verdade ou não, caso um conhecido seu esteja sendo injustamente difamado. Mas a verdade é que as avaliações de ex-ficantes ou ex-namoradas são em geral positivas, principalmente no temido quesito sexo.

Entretando o que me chamou a atenção sobre o Lulu foi a ~polêmica~ envolvendo o aplicativo, que seria uma ferramenta para objetificar os homens, que as mulheres estariam fazendo a mesma coisa que os homens fazem, que se houvesse um aplicativo semelhante para avaliar as mulheres “as feministas” estariam revoltadas e organizando protestos.

Pra começar, já existe um aplicativo que avalia as mulheres e as classifica as mulheres, chama-se vida. As mulheres são objetificadas o tempo todo. Nós nos acostumamos com concursos de misses, com musas da torcida, furacões da CPI, dançarinas de palco, com as mulheres seminuas na publicidade, com atletas de uniforme sexy, com a banalização de intervenções cirúrgicas para fins estéticos, com a ideia de que precisa sofrer para ficar bonita, com a ideia de que mulher precisa ser bonita ou no mínimo se esforçar pra ser bonita, com a imposição de padrões de beleza extremamente excludente.

Mas não é só isso. Nós vivemos numa sociedade que monitora nossa conduta sexual, que cobra que nos casemos e tenhamos filhos e que ensina às próprias mulheres a se verem como prêmios, a se objetificar, a objetificar as outras mulheres chamando-as de vagabundas, periguetes, vagabundas, rodadas, um mundo que separa mulher “pra casar”, que acusa mulheres se serem interesseiras, que julga o caráter e/ou a competência das mulheres dependesse do número de homens que quem ela se relacionou ou se relaciona.

As feministas estariam indignadas se houvesse um aplicativo pra avaliar mulheres? Ah, gente, por favor, né? Alguém aí lembra como foi que o Facebook foi inventado por um cara que tinha se vingado da namorada a expondo num blog? Que o Facebook no começo era pra homens avaliarem a aparência de mulheres? Alguém aí esqueceu que nas últimas semanas três jovens mulheres, duas menores de idade, se suicidaram porque homens em que elas confiaram compartilharam vídeos íntimos delas? Já esqueceram da Fran, que largou emprego, faculdade e que não consegue sair na rua porque a vida dela virou um inferno? Vocês esquecem todos esses sites de pornô amador?

É ofensivo e é uma estupidez comparar um aplicativo com a opressão que todas as mulheres sofrem todos os dias, dizer que estamos agindo igual aos homens. Primeiro porque não estamos julgando o caráter deles baseados no número de parceiras sexuais, não o ridicularizamos por fazer na cama coisas que nós gostamos que eles façam ou por coisas que nós gostamos de fazer. Sim, há mulheres que dão importância à coisas que eu pessoalmente considero uma bobagem, como o cara pagar a conta ou ter um carrão, mas eu não culpo essas mulheres por pensarem desse jeito, porque nós somos julgadas de acordo com o tipo de cara que conseguimos arrumar e somos ensinada que se um cara quer te conquistar ele tem que pagar a conta.

Leva tempo pra se libertar disso. Mas se o Lulu fosse um aplicativo de transformar homens em objetos, não estaríamos preocupadas em saber se o cara é engraçado, inteligente e respeita as mulheres. O grande problema do Lulu é expor algo que é insuportável para mentalidades machistas que é o fato de que mulheres gostam de sexo e falam sobre isso. E que quando estão interessadas em alguém elas querem saber se o cara tem uma boa fama porque elas pretendem fazer sexo com eles. Nós nos acostumamos a ver o sexo como uma coisa que as mulheres fazem pra agradar os homens. É por isso que choca. Porque mulher não pode falar de sexo em público, porque mulher que gosta de dar não presta, mulher que não presta não casa e deus o livre uma mulher não casar, porque todo o sentido da existência da vida de uma mulher é arrumar um marido.

Ironicamente, essa alegada objetificação é opcional, já que só podem ser avaliados perfis do Facebook e qualquer pessoa que não quiser ser avaliado pode retirar perfil do aplicativo. Não há nada parecido com isso na Internet ou na vida para que as mulheres não sejam objetificadas ou vítimas de porn-revenge.Ofensivo é mulher não poder falar de sexo, ofensivo é uma mulher chamar a outra de periguete, ofensivo é aceitar tranquilamente a objetificação das mulheres e sair em defesa dos homens e contra as mulheres numa assunto que é uma bobagem e que não chega nem perto do tipo de julgamento que todas as mulheres são obrigadas a enfrentar ao longo de suas vidas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

“Leve-me ao seu líder”


A ânsia da grande imprensa em apontar líderes – ou culpados – carrega consigo nossa incapacidade de pensar a política fora da lógica da representação e está repleta de incoerências risíveis

 Em junho deste ano, quando o país foi tomado por uma onda inédita e convulsiva de manifestações de rua, a revista Veja apresentou a seus leitores um líder. Maycon Freitas, que segundo a revista, havia reunido milhares de pessoas em manifestações no Rio de Janeiro por meio da página UCC- União Contra a Corrupção, no Facebook. Freitas sintetizava perfeitamente o gigante que acordou: segundo suas declarações, sua motivação para ir às ruas não estava relacionada a alguns centavos, mas a construir uma democracia melhor e, consequentemente, um estado melhor.

Com o rosto pintado de verde e amarelo e usando as cores da bandeira nacional, Freitas era apenas um dos milhares de jovens que foi às ruas gritar “sem partido” com vistas a melhorar a democracia, ignorando que a existência de partidos livres é uma das premissas básicas dos regimes democráticos. De modo semelhante, o engajado ativista reproduz, sem pudores, a máxima reacionária “direitos humanos para humanos direitos” e apoia as agressões da polícia aos black bloc, ignorando que a existência de direitos humanos ser parte importante para a constituição de sociedades democráticas e que, há algum tempo, existe uma uma separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e que a punição não é atribuição dos efetivos policiais.

Pegando carona na onda das manifestações, a mesma publicação que apresentou aos movimentos populares um líder que eles ainda não conheciam conseguiu, no fim de agosto, a proeza de estampar em sua capa uma militante do bloco negro com o rosto coberto de vermelho, numa capa com fundo vermelho. Seis meses depois, agora é a vez da revista Época revelar ao grande público um novo líder, desta vez não das manifestações de massa, mas da “pequena minoria de vândalos” que fazem uso da tática black bloc.

Este líder seria o jornalista Leonardo Morelli, apontado pela reportagem como coordenador da ONG Defensoria Social, “braço visível e oficial que apoia os Black Blocs”, que seria responsável pela captação de recursos para o financiamento das atividades do grupo. Uma dessas ongs, o Instituto St Quasar, teria repassado € 100 mil aos cofres da entidade. Morelli cita entre seus doadores organizações como as suíças La Maison des Associations Socio-Politiques, sediada em Genebra, e Les Idées (ambas negaram as doações) e afirma que a Defensoria Social também foi abastecida pelo Fundo Nacional de Solidariedade, da CNBB (que também nega os repasses) e cita entre seus contatos os padres católicos Combonianos e a Central Operária Boliviana.

Morelli já foi citado como líder anarquista (sic) pela mesma publicação em outubro. Segundo a coluna do jornalista Felipe Patury, Morelli se apresenta como líder e porta-voz de um grupo anarquista que teria assumido ser proprietário de 119 bananas de dinamite apreendidas pela polícia paulista em Guarulhos. Os explosivos seriam usados em um protesto em novembro denominado “um dia de fúria”.

O que possuem em comum os personagens citados? Nossa incapacidade de pensar a política fora do jogo institucional e sem a figura do líder.

Durante as jornadas de junho, uma crítica recorrente às manifestações que se alastravam pelo país dizia respeito à falta de liderança. Num breve momento, alguns integrantes do Movimento Passe Livre (MPL), grupo que havia convocado as manifestações pela redução na tarifa do transporte público ocupou esse lugar. Porém, com a revogação do aumento em diversas cidades brasileiras, o MPL tomou a decisão de não convocar outras manifestações. Desde então não tem sido poucos os que tentam preencher este vácuo de poder, seja pela apropriação dos movimentos por partidos de cores diversas, seja pela fabricação midiática de “líderes” que não são nem de esquerda, nem de direita e muito pelo contrário. O problema é que o surgimento desses novos atores no cenário político nacional vem carregado de um desconhecimento gritante a respeito da política - seja ela institucional ou não – e de incoerências risíveis que, por ingenuidade ou má-fé, têm sido sumariamente ignoradas.

Assim como a visão de democracia defendida pela nova geração de caras-pintadas não é exatamente democrática, as informações a respeito de supostos líderes anarquistas não são condizentes com princípios básicos dessa filosofia política, que incluem horizontalidade, autogestão, solidariedade e amizade. Sem deuses e sem mestres, já diria um clássico lema anarquista. Portanto, a própria de ideia de líder anarquista já é uma contradição em termos.

Falando em contradições, entre as fontes de financiamento do tal “braço visível e oficial” que apoia os black bloc, a ong Defensoria Social, estariam a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e “padres colombianos” estariam entre os contatos internacionais do grupo. Mas espera um pouco, anarquistas associados à Igreja? A CNBB negou os repasses à entidade, assim como as duas ongs suíças citadas na matéria da Época (La Maison des Associations Socio-Politiques e Les Idées) como financiadoras dos black blocs brazucas.

Por fim, não há informações sobre a entidade supostamente responsável pela doação de € 100 mil para “o braço visível e oficial” de apoio aos BB, o Instituto St Quasar, segundo a reportagem, uma ong ligada a causas ambientais. Considerando que a suposta doação não trata de uma quantia desprezível (cerca de R$ 300 mil) e devida à falta de informações adicionais mínimas, como país de origem, tempo de existência, área de atuação decidi saber um pouco mais sobre o tal instituto. Entretanto a entidade não possui endereço na Internet e, nos sites de busca, foram encontradas apenas duas ocorrências sobre o Instituto St Quasar (que não se referiam à matéria da revista Época).

A primeira é uma notícia sobre uma ação conjunta ambiental realizada por municípios do estado de São Paulo realizada no dia 22 de março, no Dia Mundial da Água. A ação teria sido promovida em parceira entre Instituto St. Quasar e Movimento Grito das Águas, do qual Morelli foi (é?) coordenador. Contudo, o texto não apresenta nenhum informação adicional sobre a origem e atividades dessa entidade. A segunda ocorrência a respeito do Instituto St. Quasar aparece em site de CNPJs. De acordo com as informações deste endereço, o Instituto St. Quasar é uma empresa de “pesquisa e desenvolvimento experimental em ciências sociais e humanas” criada em janeiro de 2012, com sede em Mongaguá, litoral paulista.

Por fim, se procede a informação publicada pela coluna de Felipe Patury, sobre Morelli ser o líder de um grupo anarquista em Guarulhos que teria assumido a posse de 119 bananas de dinamite, então estamos diante não apenas do mais ocupado e centralizador líder-de-ongs-treinador-de-black-blocs da nossa história, como temos o melhor time de advogados do país. Pensem comigo: se durante as manifestações tanta gente foi presa por porte de vinagre e em diversas cidades manifestantes têm sido levados para penitenciárias apesar da falta de provas e de negarem envolvimento em atos de vandalismo, muito me estranha que alguém que teria assumido a posse de artefatos explosivos esteja em liberdade. Em tempo: a matéria de capa da revista Época é assinada por Leonel Rocha, repórter da coluna de Patury e assina a nota sobre as dinamites.

Na semana passada a Polícia Federal divulgou a identificação de 130 pessoas pelas redes sociais que são suspeitas de incitar violência em protestos, todas essas revelações de treinamento paramilitares, financiamento internacional e posse de explosivos pela própria pessoa que poderia sofrer com as consequências legais desses atos parecem muito suspeitas. Afinal, qual o interesse em definir os anarquistas como bodes expiatórios?

A reportagem de Época foi recebida com chacota e revolta nas páginas do Black Block RJ e Black Bloc SP negam tanto o recebimento de fundos de quaisquer financiamento, nacional ou estrangeiro e a existencia de um líder para a tática. Afinal, se os adeptos da tática precisassem de visibilidade, não faria sentido esconder o rosto. Independente disso, cabe estar atento não para o que o que nos informa a grande imprensa, mas sobretudo aos pontos que ela de forma muito relapsa deixa de esclarecer.

domingo, 3 de novembro de 2013

Carta a uma jovem feminista

Querida amiga,

Estou te escrevendo esta carta porque já estive no seu lugar e eu sei que este mundo deve estar de deixando maluca. Por isso estou aqui para te dar a mão e te dizer que você pode contar comigo, como uma irmã velha. Como uma irmã feminista.

Como você já deve ter percebido, este mundo não foi feito para nós. Assim como eu, você deve ter sido ensinada desde pequena que sua função primordial nesta vida é ser bonita e agradar. O papel que te ensinaram a desempenhar foi ser doce e graciosa. Pra quando crescer você poder arranjar um bom emprego e um bom marido. E ter filhos, porque afinal de contas você é uma mulher, é óbvio que você quer ser mãe.

Mas de alguma forma, algo deu errado com você. Você gostava de brincar de Barbie, mas também de subir em árvore, de carrinhos de controle remoto, de skate e outras coisas “de menino”. Você não engolia desaforos e brigava na escola e teve que ouvir muitas vezes que se isso já é feio pra um homem, é muito pior para uma mulher.

Então você se tornou mocinha e as coisas não pararam de piorar. Você achou que não havia nada de errado em se declarar pro menino que gostava e por conta disso virou objeto de chacota. Você foi a primeira de suas amigas a transar e quando o namoro acabou e seu coração ficou partido teve que ouvir que a culpa é sua, porque se entregou muito facilmente, os homens são assim mesmo, eles vão embora depois de conseguir o que querem. Mas você também queria, na verdade a ideia foi sua. Então você virou a vadia do colégio, a menina que não era mais virgem, que não era pra namorar.

Você chorou sozinha, porque seus amigos diziam que a culpa era sua. Você nem podia contar pra sua mãe, porque fazer sexo na adolescência é errado e você tinha medo do que poderia acontecer se ela descobrisse. Você sabia que não tinha feito nada de errado. Você era boa aluna e tinha bom caráter. Você fez tudo certinho, se informou do necessário pra evitar doenças e uma gestação indesejada. Mas nada disso importava porque você simplesmente não deveria estar fazendo sexo. Você deveria “se valorizar”, embora nunca tenha entendido realmente o que havia de errado em expressar seu afeto e seu desejo.

O que havia de errado, minha querida, era ser mulher. Então você lutou com todas as forças para não ser e se esforçou para renegar tudo aquilo que era associado com o feminino. Começou a falar grosso, chamar palavrão, fumar e beber em quantidades cavalares. Porque você não era igual às outras. Você não era frágil, você não era delicada, você não era fútil. Você tentou agir como um homem porque percebeu que as mulheres eram sempre ridicularizadas, tratadas como seres inferiores, infantis, emotivos. E você não queria ser nada disso. Você começou a agir como homem na esperança que eles te tratassem como um igual. E funcionou por um tempo, até que você percebeu que ao menor deslize você teria que ouvir que "tinha que ser mulher", que era coisa"de menininha".

Um dia você se cansou de tudo isso e foi nesse dia que as coisas começaram a mudar. Eu não sei como você chegou ao feminismo e a esse texto, mas eu imagino, a sua alegria ao perceber que tudo isso não acontece por acaso. Que o problema não é você ser mulher, mas toda um sistema cultural criado para nos aprisionar, para sequestrar nossa sexualidade, para nos fazer sentir inseguras com nossos corpos, para achar que nós estamos em perpétua competição umas com as outras. Eu entendo que se ao mesmo tempo você está encantada com tudo isso, há também um sentimento de revolta crescente, uma vontade de tocar fogo no mundo. A verdade te libertará, mas primeiro era vai te enfurecer, já disse a feminista Gloria Steinem.

Então, se eu posso te dar um conselho eu te recomendaria duas coisas: estar atenta e forte, como diz aquela música. Estude, porque nesse mundo em que não somos levadas a sério a gente ter muita segurança na hora de falar. Porque não tenha dúvidas: vão tentar desqualificar seus argumentos, vão tentar te irritar com piadas estúpidas. E você tem que ser mais inteligente que eles, para rebater as provocações mostrando o quanto elas são ridículas. Porque dizem que feministas não têm senso de humor e dizem muitas coisas sobre o feminismo, mas eu vou te contar algo sobre feminismo que você não vai ler na coluna de nenhum colunista de jornal reacionário: o feminismo é libertador. O feminismo vai te ajudar a ver que você tem irmãs com quem pode contar, que nós não estamos competindo umas com as outras, que nós podemos ser quem quisermos.

Você é forte, você é corajosa e eu estou aqui pra você.
  
Com amor,

FM

domingo, 6 de janeiro de 2013

Uma linda mulher ou Como ensinar a uma geração todos os clichês de gênero e submissão



Nos últimos meses acompanhei algumas discussões na Internet sobre a febre literária do momento 50 Tons de Cinza. No começo pensei que era uma sacanagenzinha light pra um público caretinha, por isso não me despertou o menor interesse. Contudo, depois li alguns comentários e fiquei sabendo que o livro é um desses libelos machistas de deixar qualquer feminista de cabelo em pé. 

A história, pra quem ainda não sabe do que se trata, é um desses contos de fadas modernos, em que a mocinha conhece um milionário bonitão e no fim os dois vivem felizes para sempre, só que no meio disso tem umas paradas sadomasoquistas leves, pra não chocar os leitores. Só que nesse ínterim o rapaz cobre a moça de presentes caros e ela, que até então era virgem, vai cedendo às praticas sexuais pouco ortodoxas que o namorado curte pra que ele não enjoe dela, como aconteceu com outras mulheres que vieram antes. 



Ou seja, é um amontoado de clichês reforçando a ideia do homem rico que cobre a mulher de presentes, de que as mulheres estão sempre competindo umas com as outras, de que vale a pena tudo na cama desde que seja por amor. De repente me veem na cabeça milhares de manuais do sexo lacrado de revistas femininas que ensinam como enlouquecer seu homem na cama para que ele se case com você. No fundo a ideia é que o sexo não é algo que a mulher faça pelo seu próprio prazer, mas porque desse jeito vai conseguir amarrar um cara.


Li em algum lugar que estão filmando, o que me fez pensar que há alguns filmes que marcam as gerações em termos de educação sentimental e de educação de papeis de gênero. Pra mim, o filme que ensinou a minha geração, nascida nos anos 80 e que cresceu nos anos 90 foi Uma Linda Mulher. Quem na faixa dos 30 anos não se lembra de Julia Roberts se esbaldando nas lojas na Rodeo Drive ao som de Pretty Woman e da cena em que ela se vinga da vendedora esnobe? Na época eu não prestava muita atenção, mas para além da trama estapafúrdia do conto de fadas entre a prostituta de lindíssima e o milionário bonitão carente havia muita coisa que estava educando as meninas da minha geração a respeito do que é ser mulher. Revi o filme esses dias. Dei umas boas risadas, mas em geral me deu vontade de chorar.

São tantos clichês de gênero que eu não sei nem por onde começar. A prostituta de rua eu em dois dias frequenta ambientes de alta classe reforçando a ideia de que a mulher deve ser uma dama fora de casa e uma puta na cama; a euforia no momentos de fazer compras reforçando a ideia de que mulher gosta mesmo é de fazer compras. Embora a personagem seja uma profissional do sexo, ela nunca parece gostar muito da coisa, o que me lembra o mito difundido pelos mascus que mulher não gosta muito de sexo e só o faz como meio de obter amor. Não acho que a vida de uma prostituta deva ser fácil, mesmo quando o seu cliente é um bonitão super cavalheiro, afinal continua sendo trabalho. 

Mas me incomoda sobremaneira o fato de ela só decidir largar a prostituição depois que ele diz que ela tem potencial, a incapacidade dela perceber seu próprio valor sem que os diversos homens que estão na trama façam isso por ela: o velhinho rico, o gerente do hotel, o próprio personagem do Richard Gere. É a ideia do complexo de Cinderela: uma hora vai surgir um homem que resolverá todos os seus problemas e a partir de então a única decisão que uma mulher terá que tomar na vida será que sapato combina com aquele vestido.

E a ópera, gente? Digamos que você seja um ricaço que contratou uma prostituta gata para ficar com você durante uma semana. O que você faz? Vai para o hotel compensar seu investimento ou coloca a moça num avião e a leva para assistir à ópera? É uma demonstração de poder e riqueza tão gratuita que chega a ser cômico, mas depois eu fico pensando no papel de educação da cena. Tudo bem, querida, eu até posso ter me apaixonado pela sua beleza e dotes de cama, mas, bitch, please, vê se aprende umas coisinhas da cultura super refinada que eu consumo pra gente ter o que conversar.
Contudo, o que me deixa mais chocada é como em poucos dias de convivência, uma mulher que no mínimo deveria saber se defender sozinha – porra, ela faz ponto nas ruas de LA! – se torna uma criaturinha indefesa porque tomou um banho de loja e arranjou um macho para cuidar dela. A forma como ela reage completamente passiva diante dos assédios do escrotossauro amigo do cliente-amante é revoltante. Uma mulher com essa história no mínimo deveria saber gritar, dar um soco na cara, uma navalhada na cara, sei lá. Reage, filha! Mas não. A mulher só não é estuprada porque de novo o príncipe encantado surge e a salva.

Por fim, temos um final feliz e o final feliz é o que? Casamento! Porque o amor não basta. A proposta dele, de levar ela com ele e montar um apartamento, é bem paternalista, é verdade. Mas nada me choca mais depois do festival de clichês machistas que vimos até aqui. E convenhamos que pra duas pessoas que se conheciam há uma semana até que é bem razoável. Mas aí o que acontece? Ela fica ofendida e ele tem que reencenar o papel do príncipe encantado no cavalo branco salvando a princesa, como se todos os problemas e objetivos da vida se realizassem com o matrimônio.

Daí a gente olha pra mulheres de 30 anos que são inteligentes, independentes e lindas e que estão aí sofrendo porque ainda não casaram e não é difícil entender por quê. A gente é ensinada desde que nasce que só vai ser feliz depois que o conto de fadas acontecer com a gente!
É por essas e outras que quando for mãe não contarei nenhum.